quarta-feira, 7 de novembro de 2012

crônica três "As manhas de uma manhã"


 As manhas de uma manhã
... e aquele rosto lindo, de pele bronzeada, aveludada como a de um pêssego,  de barba grisalha caprichosamente desenhada, com os olhos cor de caramelo fixos no seu, começa a aproximar-se aproximar do seu. Seu corpo todo treme, principalmente depois de sentir o aroma do Blue Seduction, de Antonio Banderas, que exala desse corpo musculoso, que há tanto tempo ela deseja. Não é possível que esse homem, que acabou de desabafar sobre as traições daquela megera traidora, está prestes a beijá-la. Já sente o hálito quente com odor de hortelã muito próximo às suas narinas, fecha os olhos para saborear toda a intensidade desse momento, quando... Rimmmmmmmmmmm.
 “Maldito despertador!”, berra seu coração acelerado. Os olhos se escancaram rapidamente para constatar o óbvio: ele se esvaneceu no ar. É a terceira vez só nesta semana que o maldito relógio a arranca dos sonhos, exatamente no instante que está prestes a beijar o apaixonado Guilherme  Octávio, cuja fortuna será solapada pela bandida Cláudia Regina, que o trai com Renato Henrique, marido de sua melhor amiga (está lá na Revista da TV).
Não precisa nem olhar para o relógio de cabeceira para saber que são exatamente 5 horas da manhã, horário de verão, e que, se não se apressar, perderá o ônibus das 5h37. Será obrigada a espera o da 6h17, que sempre vem tão lotado que muitas vezes não dá para embarcar. Já não se lembra mais do beijo quase dado. Enquanto se levanta, em sua mente lateja a lembrança do coletivo que poderá perder. Apanha uma toalha limpa – a que está dependurada certamente ainda não secou – e segue para o banheiro o mais rápido que a preguiça lhe permite. 
A água do chuveiro está tépida, assim como sua vida. A conta tem vido alta. Por isso desliga rapidamente a torneira, se enrola na toalha e sai do box. Para em frente ao espelho e, enquanto coloca a pasta na escova, volta-lhe a mente o sorriso doce de Guilherme Octávio. “Não. Ele jamais se apaixonaria por essa figura descabelada refletida nesse espelho”. Sente uma leve lancetada no peito. Será um aviso de enfarto iminente? Quer choramingar, mas não tem tempo, precisa escovar os dentes apressadamente. O sabor da hortelã lembra o hálito de... “Apage, satanás! Me deixa! Já estou atrasada! ”. Enxágua a boca e lava o rosto, que ficou respingado de pasta, bem rápido, como se fosse “tirar o pai da forca”.  
Assusta-se ao ouvir a campainha. Enxuga-se mais rápido ainda, veste robe chambre e mesmo descalça, deixa o banheiro em direção à porta. Estranha que a campainha não toca uma segunda vez. Aproxima-se da porta, olha pelo olho mágico e não vê ninguém.  “Será brincadeira dos pestinhas endiabrados do 702?”. Com cautela, tira a correte de segurança e destranca a porta. Abre e... “Oh, um homem caído na soleira?”. Misturam-se surpresa, horror, curiosidade... Trêmula, ofegante,  corre olhar em torno saguão de seu  andar e na escada, mas não encontra ninguém.
Volta até a porta e, a muito custo, se abaixa e toca o homem com os dedos. Surpresa! Ele está frio e rígido uma barra de gelo daquelas que o pai comprava nas festas de aniversário para gelar o chopp... “Não. Que hora mais imprópria para pensar em festas, me aniversários e em chopp...” Sim. Ela está diante de um cadáver. “Quem será o morto? Quem o matou? Quem tocou a campainha? Quem...” Lá no quarto, o despertador insiste em repetir o Rimmmmmmm... O som a lembra de que não tem mais nada a fazer, a não ser apanhar o telefone. Quer correr, tudo o que aconteceu até aquele momento  provocou  um grande esgotamento.
Passam-se horas, dias, anos até conseguir se lembrar do número, com o aparelho ao ouvido. Mas o número chega à sua mente. Disca um, depois o nove, para um pouco e só então disca o zero... “Alô! Central de Polícia... “. Já não ouve as perguntas. Nem imagina as respostas sua mente só está ocupada com uma frase: “Que manhã maldita, gente!”
autora:REGINA HELENA MORAES

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